Estamos vivendo, no Brasil, um grave momento histórico de perseguição ao campo social das ideias, e a tudo e a todos que possam interferir e/ou implicar em qualquer proposta de discussão sobre o estabelecido. Uma parcela significativa da nossa população, encarcerada pelos muros da pobreza, abandonada e desprezada, colocada totalmente à margem do processo civilizatório, sem acesso a um mínimo de formação intelectual e, portanto, vulnerável e receptiva a uma potente carga de conteúdos fúteis de manipulação de massa a que é diariamente submetida, sem pausa para um mínimo de reflexão, finalmente confirmou sua inevitável propensão a ajeitar-se como podia: ou como "bandida" ou como uma legião de fanáticos religiosos.
Desde a década de 1980, se não, um pouco antes, começaram a surgir igrejas, aqui e ali, que, atentas a esse nicho, legado dos inúmeros crimes e improbidades cometidos pelo Estado brasileiro contra o nosso povo, ao longo de sua formação política e histórica, resolveram atendê-lo, dando a esta parcela da população um lugar de dignidade junto ao "Filho de Deus". Diz a bíblia: "Os humilhados serão os exaltados".
Hoje, em 2019, esta parcela da população brasileira, cerca de 70% de seus indivíduos, está fortemente dominada pela convicção de que sua parceria com Jesus é o que lhe garante um mínimo de dignidade de vida jamais alcançada anteriormente, enquanto permaneceu à espera de que seu lugar no processo "civilizatório" lhe fosse oferecido.
E ainda há quem pergunte por que os pobres deixaram-se levar pelo discurso da Direita!
Alguém das classes economicamente dominantes, em sã consciência, ou de posse das poucas teorias que conseguiu acumular durante sua vida estudantil, pode imaginar que um indivíduo da periferia tenha alguma ideia do que seja as concepções políticas de Direita e Esquerda, quando esta própria parcela privilegiada da população demonstra constantemente não ter a menor ideia do que significam? Então, por que esperam por isso? Pelo quê esperam? Para quê esperam?
Excetuando os períodos em que Getúlio Vargas e, mais do que este, Luiz Inácio Lula da Silva ocuparam o cargo máximo do Poder Executivo Federal, as gestões econômicas adotadas pelo Estado brasileiro ao longo de toda a sua história sempre desconsideraram este povo, que é a maioria. Os regimes políticos adotados pelo Estado brasileiro, nas suas diversas etapas históricas, excluíram peremptoriamente este povo, que é a maioria. Toda a nossa história conta a história de um povo colocado majoritariamente à margem da sociedade por uma elite luxuriosa, ignorante, pernóstica, arrogante, patriarcal-escravocrata.
Pois bem, acontece que todos os nossos bens imateriais são de domínio deste povo: nossa cultura, nossa arte, nossa ciência, e tudo o que resulta do trabalho deste povo como bens materiais, sem que este povo tenha ideia disso. E não tem ideia disso porque não lhe é permitido ter essa ideia. Tudo o que esse povo sabe é que precisa comer para sobreviver, morar em algum lugar e se reconhecer como parte de uma comunidade qualquer, sabe que precisa continuar existindo, apesar de o status quo tratar a sua existência o tempo todo, em todos os espaços, como uma existência menor, sem qualquer importância. Dentro desta realidade brutal e cruel, que a vida nestes sítios lhe permite, este povo só pode contar mesmo com o "Filho de Deus", já que com o Estado não pode contar mesmo, e é esta a única versão da realidade que ele experimenta.
Esse estado de coisas criou, então, uma dicotomia perniciosa, que parece não ser de exclusividade brasileira, mas que encontra, no momento, ecos em toda a América Latina ou, pelo menos, boa parte dela, a partir da qual foi possível valores que seriam da Esquerda serem apoderados pela Direita, que atribui à Esquerda os valores que são seus. Um caos ideológico intencional e institucionalizado, do qual se ergue a maquete da "nova ordem". E esta "nova ordem" não pode permitir que este caos seja revelado, compreendido, muito menos observado, mesmo que de forma velada, aludida, metaforizada artisticamente; uma vez que fundamenta toda a sua edificação.
O Fundamentalismo fundamenta-se na não reflexão, na destruição de todos os meios que permitam ao ser humano questionar, gerar dúvidas, apontar falhas naquilo que dogmatiza sua relação com o fundamento estabelecido. As doutrinas fundamentalistas (ou não) transformam o sentimento religioso - que nada tem a ver com tudo isso - em dogmas que designam as bases sobre as quais deve se sustentar a sua fé, e que, por isso mesmo, descaracteriza-se como fé para tornar-se obediência aos dogmas. Esses dogmas devem ser tão bem absorvidos a ponto da obediência a eles ser admitido como o único canal de comunicação possível com o "criador" que, então passa a ser temido, ao invés, de cortejado.
Ora, a Arte está no extremo oposto do dogma, por sua primordial função, que é justamente a de orientar o olhar da civilização para as suas próprias falhas, sobretudo a Arte da Comédia. A Comédia é, dentre os estilos de dramaturgia, aquela que aponta o erro, que desconstrói a ideia de perfeição (lugar onde a doutrina coloca, de forma dogmática, a divindade).
Não há blasfêmia ou heresia na Comédia, pois ela não dialoga com a fé de ninguém, nem para afirmá-la nem para contradizê-la. A Comédia, como qualquer estilo de dramaturgia e toda forma de Arte, sobretudo, as Artes da Cena, coloca o Homem diante dele mesmo no seu tempo e espaço de existência, para que ele, o Homem, possa analisar e reformular suas referências. Esta função é fundamental no processo civilizatório. O "Especial de Natal" criado e produzido pelo genial grupo de comédia audiovisual PORTA DOS FUNDOS cumpre tão somente esta função. O que ocorre é que a comédia, inevitavelmente, transgride o dogma, apontando-lhe as falhas.
O que tanto incomodou no "Especial de Natal" do PORTA DOS FUNDOS para a NETFLIX é que o roteiro propôs que Jesus possa ter-se dado a uma experiência homossexual, o que para os dogmas das igrejas de base cristã têm como inadmissível. Mas, só é inadmissível para os dogmas das igrejas de base cristã, não para toda a comunidade humana do planeta, nas suas diversas crenças e culturas. Portanto, dogmas de igrejas não configuram uma verdade absoluta e universal, mas uma regra compatível com o que creem os que se afinam com essas regras. O roteiro do Especial de Natal do PORTA DOS FUNDOS propõe um Jesus humanizado, portador de toda a riqueza e complexidade que habita a natureza humana, e que, após trinta anos de vida, de repente, é intimado a assumir uma origem divina e a tarefa de tornar isso crível aos olhos do ocidente. Isso, dentro de uma linguagem de Comédia. Por que não?
Se Jesus teve ou não uma vida sexual, como qualquer homem, e que essa vida sexual possa ter sido compartilhada com outros homens, isso só incomoda a quem tem como dogma o conceito de que homossexualidade é "pecado". Assim como também é um dogma estabelecido por certas igrejas, e não por outras, que o simples exercício da sexualidade, mesmo na sua forma heteronormativa, fere a imagem divina de Jesus, que deve representar uma forma santa (distinta, separada) de existir enquanto Homem.
A Comédia, ao contrário do dogma, não estipula uma verdade, e sim, propõe uma hipótese ficcional para o que possa ter sido a verdade. Podemos levá-la a sério ou não. De preferência, não devemos levá-la a sério, e sim, enxergarmos, no que assistimos, a oportunidade de reavaliar a forma como o dogma que adotamos interfere na nossa relação com quem se comporta diferentemente do modelo estabelecido por ele, e que precisa oferecer o mesmo respeito exigido ao que acreditamos. Vez por outra é preciso romper com o dogma, profanar o sagrado, para que possamos nos ver como somos, e nos humanizarmos. A rigidez da "verdade" pode estimular à intolerância. A empatia necessita de flexibilidade de ideias para a sua fruição. A Comédia, como toda forma de Arte, convida ao questionamento, à indagação, à dúvida, indispensável ao crescimento e aprimoramento de todos Ser Humano, por isso, é tão perseguida pelos que se beneficiam dos dogmas.
Temos assistido, diariamente, a uma lamentável realidade decorrente da pauta estabelecida pela dogmatização do nosso modelo social, que fere brutalmente o legado de Jesus, associando sua imagem ao que há de mais abjeto e desumano, à construção de uma ideologia genocida. Os dogmas das igrejas e seus fundamentalismos têm justificado as ações mais estúpidas e incoerentes com o amor pregado por Jesus como única salvação possível para os Homens, inaugurando, neste início do Terceiro Milênio, uma nova Era de barbáries com poder de destruir qualquer possibilidade de futuro para a Civilização Humana.
Não, não é a Comédia do PORTA DOS FUNDOS que constitui heresia!
HERESIA É A MISÉRIA, A FOME, A GUERRA, A INJUSTIÇA, O GENOCÍDIO, O RACISMO, A HOMOFOBIA, A ESCRAVIDÃO, A EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM, O FOMENTO À IGNORÂNCIA COMO FORMA DE MANIPULAÇÃO DE MASSA, A ELITIZAÇÃO DO ACESSO À UMA VIDA SAUDÁVEL ATRAVÉS DA DESTRUIÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA, O COMÉRCIO DE VENENOS VENDIDOS COMO REMÉDIOS... É ISSO QUE CONSTITUI A MAIOR HERESIA CONTRA JESUS!
Feliz natal a todos que creem e que não creem!
Esse estado de coisas criou, então, uma dicotomia perniciosa, que parece não ser de exclusividade brasileira, mas que encontra, no momento, ecos em toda a América Latina ou, pelo menos, boa parte dela, a partir da qual foi possível valores que seriam da Esquerda serem apoderados pela Direita, que atribui à Esquerda os valores que são seus. Um caos ideológico intencional e institucionalizado, do qual se ergue a maquete da "nova ordem". E esta "nova ordem" não pode permitir que este caos seja revelado, compreendido, muito menos observado, mesmo que de forma velada, aludida, metaforizada artisticamente; uma vez que fundamenta toda a sua edificação.
O Fundamentalismo fundamenta-se na não reflexão, na destruição de todos os meios que permitam ao ser humano questionar, gerar dúvidas, apontar falhas naquilo que dogmatiza sua relação com o fundamento estabelecido. As doutrinas fundamentalistas (ou não) transformam o sentimento religioso - que nada tem a ver com tudo isso - em dogmas que designam as bases sobre as quais deve se sustentar a sua fé, e que, por isso mesmo, descaracteriza-se como fé para tornar-se obediência aos dogmas. Esses dogmas devem ser tão bem absorvidos a ponto da obediência a eles ser admitido como o único canal de comunicação possível com o "criador" que, então passa a ser temido, ao invés, de cortejado.
Ora, a Arte está no extremo oposto do dogma, por sua primordial função, que é justamente a de orientar o olhar da civilização para as suas próprias falhas, sobretudo a Arte da Comédia. A Comédia é, dentre os estilos de dramaturgia, aquela que aponta o erro, que desconstrói a ideia de perfeição (lugar onde a doutrina coloca, de forma dogmática, a divindade).
Não há blasfêmia ou heresia na Comédia, pois ela não dialoga com a fé de ninguém, nem para afirmá-la nem para contradizê-la. A Comédia, como qualquer estilo de dramaturgia e toda forma de Arte, sobretudo, as Artes da Cena, coloca o Homem diante dele mesmo no seu tempo e espaço de existência, para que ele, o Homem, possa analisar e reformular suas referências. Esta função é fundamental no processo civilizatório. O "Especial de Natal" criado e produzido pelo genial grupo de comédia audiovisual PORTA DOS FUNDOS cumpre tão somente esta função. O que ocorre é que a comédia, inevitavelmente, transgride o dogma, apontando-lhe as falhas.
O que tanto incomodou no "Especial de Natal" do PORTA DOS FUNDOS para a NETFLIX é que o roteiro propôs que Jesus possa ter-se dado a uma experiência homossexual, o que para os dogmas das igrejas de base cristã têm como inadmissível. Mas, só é inadmissível para os dogmas das igrejas de base cristã, não para toda a comunidade humana do planeta, nas suas diversas crenças e culturas. Portanto, dogmas de igrejas não configuram uma verdade absoluta e universal, mas uma regra compatível com o que creem os que se afinam com essas regras. O roteiro do Especial de Natal do PORTA DOS FUNDOS propõe um Jesus humanizado, portador de toda a riqueza e complexidade que habita a natureza humana, e que, após trinta anos de vida, de repente, é intimado a assumir uma origem divina e a tarefa de tornar isso crível aos olhos do ocidente. Isso, dentro de uma linguagem de Comédia. Por que não?
Se Jesus teve ou não uma vida sexual, como qualquer homem, e que essa vida sexual possa ter sido compartilhada com outros homens, isso só incomoda a quem tem como dogma o conceito de que homossexualidade é "pecado". Assim como também é um dogma estabelecido por certas igrejas, e não por outras, que o simples exercício da sexualidade, mesmo na sua forma heteronormativa, fere a imagem divina de Jesus, que deve representar uma forma santa (distinta, separada) de existir enquanto Homem.
A Comédia, ao contrário do dogma, não estipula uma verdade, e sim, propõe uma hipótese ficcional para o que possa ter sido a verdade. Podemos levá-la a sério ou não. De preferência, não devemos levá-la a sério, e sim, enxergarmos, no que assistimos, a oportunidade de reavaliar a forma como o dogma que adotamos interfere na nossa relação com quem se comporta diferentemente do modelo estabelecido por ele, e que precisa oferecer o mesmo respeito exigido ao que acreditamos. Vez por outra é preciso romper com o dogma, profanar o sagrado, para que possamos nos ver como somos, e nos humanizarmos. A rigidez da "verdade" pode estimular à intolerância. A empatia necessita de flexibilidade de ideias para a sua fruição. A Comédia, como toda forma de Arte, convida ao questionamento, à indagação, à dúvida, indispensável ao crescimento e aprimoramento de todos Ser Humano, por isso, é tão perseguida pelos que se beneficiam dos dogmas.
Temos assistido, diariamente, a uma lamentável realidade decorrente da pauta estabelecida pela dogmatização do nosso modelo social, que fere brutalmente o legado de Jesus, associando sua imagem ao que há de mais abjeto e desumano, à construção de uma ideologia genocida. Os dogmas das igrejas e seus fundamentalismos têm justificado as ações mais estúpidas e incoerentes com o amor pregado por Jesus como única salvação possível para os Homens, inaugurando, neste início do Terceiro Milênio, uma nova Era de barbáries com poder de destruir qualquer possibilidade de futuro para a Civilização Humana.
Não, não é a Comédia do PORTA DOS FUNDOS que constitui heresia!
HERESIA É A MISÉRIA, A FOME, A GUERRA, A INJUSTIÇA, O GENOCÍDIO, O RACISMO, A HOMOFOBIA, A ESCRAVIDÃO, A EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM, O FOMENTO À IGNORÂNCIA COMO FORMA DE MANIPULAÇÃO DE MASSA, A ELITIZAÇÃO DO ACESSO À UMA VIDA SAUDÁVEL ATRAVÉS DA DESTRUIÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA, O COMÉRCIO DE VENENOS VENDIDOS COMO REMÉDIOS... É ISSO QUE CONSTITUI A MAIOR HERESIA CONTRA JESUS!
Feliz natal a todos que creem e que não creem!
Como já disse Caetano, e é referendado pela psicanálise, Narciso acha feio o que não é espelho. Além de uma miopia crônica diante da realidade,também não tem o mínimo senso de humor para rir de suas próprias limitações intelectuais, baboseiras e bizarrices.
ResponderExcluirTerminou esse texto muito bem, Cecília! O que é feio mesmo já se tornou "normal"
ResponderExcluir