SOBRE "DESALINHO"
texto de Marcia Zanelatto e direção de Isaac Bernat
elenco: Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Diogo de Andrade Medeiros
A encenação sobre o poema dramático de Marcia Zanelato
devolve ao teatro brasileiro o direito de ser arte da palavra, e palavra essencial, orgânica, vital.
"Desalinho" foge da entediante estética realista/naturalista, e vai buscar dentro de cada um de nós, que assiste, os ecos internos dos nossos desejos silenciados.
Quem ainda não viu, ainda está em tempo de ver!!!
O tempo em
Desalinho (Ensaio crítico de Martha
Ribeiro)
"Assim como Agostinho em sua narrativa autobiográfica
escrita ao final do século III, Desalinho, escrito por Márcia Zanelatto, nos
interroga sobre o tempo.
“O que é, pois, o tempo?” Perguntou Agostinho no livro
XIV das Confissões: “Se ninguém perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem
me fizer a pergunta, já não o sei”.
NO ENTANTO FAZEMOS O PRÓPRIO TEMPO
“Quanto tempo o tempo tem?” [...] “é o passado que
segue mudando conforme se anda…”, dirá a Enfermeira de Kelzy Ecard em
Desalinho, introduzindo o espectador para a tragédia da personagem Mariana,
heterônimo ficcional da poetisa Florbela Espanca, interpretada por Carolina
Ferman. No palco, seremos testemunhas de confissões nada tagarelas, de um tempo
onde nada passa, onde tudo é presente.
No presente eterno em Desalinho, experimenta-se junto
aos personagens um outro tempo, um tempo que não se pode medir pela sucessão
dos tempos passados e futuros. Um tempo dilatado, pois o tempo em Desalinho é o
tempo dos afetos, e por isso um tempo enovelado!
Em Desalinho, a dramaturga costura poesia e narrativa
dramática, sem esforços, sem pedantismos inúteis: “canta um pouco. bem
baixinho, até eu conseguir pensar numa rosa”; diz Mariana a Enfermeira. E continua:
“eu preciso de flores para amadurecer”, ao passo que essa responde: “já vai
passar, o medicamento dá reações assim desagradáveis”; impulsionando a flecha
do tempo, para que a história do drama de Mariana, presa num hospital
psiquiátrico, possa correr diante de nossos olhos. Mas a concessão ao drama é
breve, a poesia é a linguagem desta bela obra escrita por Márcia Zanelatto.
Desalinho, que nos interroga sobre o tempo, é uma peça poema. Seria o tempo em
Desalinho o tempo da alucinação? Da realidade? Do sonho? Não há interesse numa
resposta, trata-se de um tempo onde todos os tempos estão presentes.
“se eu tivesse tido como interromper o fluxo. se eu
soubesse parar o tempo”, diz o Irmão. Mas aqui se trata de um tempo que não
depende mais do movimento, Desalinho convoca um tempo múltiplo. Um tempo capaz
de afirmar a potência de todos os mundos, de todos os tempos.
O tempo em Desalinho convoca um tempo deleuziano.
Sobrepondo o antes e o depois, em camadas sobrepostas, numa ordem
estratigráfica, a história vivenciada por Mariana, o Irmão e a Enfermeira não
obedece a uma linha do tempo, coexiste num emaranhado. O tempo em Desalinho não
segue o fluxo do tempo, corresponde a uma massa de tempo, um emaranhado. Enfim,
UM TEMPO EM DESALINHO!
Cito Jorge Luis Borges (como não citar!) no prólogo a
História da Eternidade: “O movimento, ocupação de lugares diferentes em
instantes diferentes, é inconcebível sem o tempo; igualmente o é a imobilidade,
ocupação de um mesmo lugar em pontos diferentes do tempo. Como pude não sentir
que a eternidade, ansiada com amor por poetas, é um artifício esplêndido que
nos livra, embora de maneira fugaz, da intolerável opressão do sucessivo?”
Borges nos confessa sua profunda desconfiança em relação ao conceito de tempo, assim é em Desalinho. No palco, somos testemunhas da confissão de três personagens, rememorando um presente que dura tanto quanto a história do universo: uma eternidade.
Borges nos confessa sua profunda desconfiança em relação ao conceito de tempo, assim é em Desalinho. No palco, somos testemunhas da confissão de três personagens, rememorando um presente que dura tanto quanto a história do universo: uma eternidade.
Desalinho nos interroga sobre o tempo, a partir do
tempo-poesia, desafiando a concepção do tempo dramático, da sucessão linear,
desta intolerável opressão da sequencialidade:
“para quem não tem mais nada, ter paciência é um exagero” (Mariana)."
“para quem não tem mais nada, ter paciência é um exagero” (Mariana)."
Martha
Ribeiro é pesquisadora, diretora teatral e professora no
Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense. Tem se dedicado ao
estudo em Teatro performativo, publicando uma série de artigos sobre o tema. É
diretora artística do Laboratório de Criação e Investigação da Cena
Contemporânea e do Projeto Pirandello Contemporâneo. Publicou pela Perspectiva,
em 2010, o livro "Luigi Pirandello: um teatro para Marta Abba".
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