2º Parte – Por dentro das obras
Começamos a “dissecar” a obra de Chico Buarque com Gota D’Água, peça baseada na tragédia grega Medéia, de Eurípedes, só que ambientada nos dias de hoje. Foi escrito e encenado em 1975, resultado da parceria com Paulo Pontes, autor com quem ele já tinha trabalhado em O Homem de La Mancha. A inspiração veio a partir de um programa chamado “caso verdade”, criado por Oduvaldo Viana filho e
exibido pela Rede Globo, em 1973. Mas a obra foi muito mais além,
ganhando contornos de clássico e abrindo portas para uma linguagem
inovadora, em função da combinação de vários elementos. E sem querer,
plantou as sementes para um futuro teatro musical brasileiro.
A história: A trama se
passa na Vila do Meio-dia, conjunto habitacional suburbano do Rio de
Janeiro. Temos o foco principal na relação entre a nossa “Medéia”, que
aqui se chama Joana, e Jasão, o sambista que, depois de dez anos de vida em comum com ela, decide abandoná-la e aos dois filhos para se casar com Alma, filha do inescrupuloso Creonte. Este, além de impulsionar a carreira musical de Jasão, é dono das casas do conjunto.
Joana não consegue aceitar a traição de jeito nenhum. Creonte, para
evitar futuros problemas, resolve despejá-la da Vila. Para se vingar
dos três, ela prepara um prato especial para o casamento: um bolo
envenenado para presentear a noiva. Os dois filhos se tornam portadores
desse “presente”, mas Creonte impede a filha de comê-lo e os
expulsa da festa. Com o fracasso do plano de matar seus inimigos, ela
resolve dar fim à própria vida e dos filhos. Pega o bolo e divide entre
eles. No final, ao invés do bolo, Jasão recebe os corpos dos três. A vingança se cumpre.
Nosso segundo foco é o próprio povo, na
figura dos moradores da vila: vemos o seu dia-a-dia, sua luta por
sobrevivência e a exploração que sofrem de Creonte. Todos pagam
prestações com juros abusivos e, quanto mais pagam, mais devem. Os
vizinhos, principalmente as mulheres, funcionam como uma adaptação do
“coro grego”, informando os fatos da história à medida que vão sendo
desencadeados.
HISTÓRICO
Paulo Pontes vinha de uma geração de
artistas que via os problemas sociais como um material essencial para
criação do seu teatro. Fez parte do chamado “teatro de resistência” que,
nos anos da ditadura militar, buscou fomentar a criação de uma
dramaturgia mais critica e realista. Foi um dos autores do famoso show Opinião, em 1964, dirigido por Augusto Boal, que misturava canções e narrações referentes à problemática social do país.
Portanto, apesar da escolha de uma
tragédia grega, o foco era claro: retratar a realidade brasileira, onde o
povo se tornasse protagonista desta história. Isso já tinha acontecido
antes, na década de 50, com obras como: Eles não usam black-tie (Gianfrancesco Guarnieri), O Auto da Compadecida (Ariano Suassuna), O Pagador de Promessas (Dias Gomes),
entre muitas outras. Todas essas, além de trazer o “povo” como
personagem principal, buscavam o resgate de uma identidade nacional.
Com a nossa tragédia moderna não foi diferente: Medéia
é trazida para o Rio de Janeiro da década de 1970. São inseridos também
elementos da cultura brasileira, como o samba e o ritos da umbanda. Os
moradores da Vila do Meio-dia refletem o sofrimento de um povo pobre,
vítima da injustiça social da época. A figura do opressor Creonte
é uma critica à distribuição de renda desigual, dentro de um sistema
capitalista de privilégios, onde quem tem mais dinheiro, detém o poder e
explora as camadas mais pobres, no caso, o povo. Mostra também que o
poder econômico corrompe o homem, como por exemplo, no caso de Jasão. Em contraste, Joana é a personagem que vai contra tudo isso, incorruptível e incapaz de se vender.
Tudo isso soava como uma propaganda
contrária ao “milagre brasileiro”, amplamente divulgado pelo governo e
que insistia em ressaltar o êxito econômico do país, tentando abafar
muita coisa. Os palcos se tornavam, cada vez mais, reféns da tal “ação
censória”, responsável por vetar ou liberar uma peça, e depois da
experiência com Calabar, que nem estrear conseguiu, a liberação de Gota D’água
se tornou uma preocupação. Mas ela conseguiu, ainda que sofrendo muitos
cortes (segundo jornais da época, 116 cortes) , incluindo palavrões e
diálogos, além da classificação, restrita para maiores de dezoito anos. A
peça ficou com quase três horas de duração, também por cortes devido ao
tempo. O livro, lançado no mesmo ano, trazia a obra completa, sem o
dedo da censura. Segundo Chico, se montada na íntegra, duraria mais de
quatro horas.
O DRAMA, A MÚSICA E O POEMA
“ Nunca a poesia exerceu, em
nosso Teatro, uma função dramática tão feliz. As palavras se encadeiam
com maravilhosas surpresas sonoras e ao mesmo tempo brotam com uma
incrível espontaneidade.” Sábato Magaldi
Pensando em teatro musical, Gota D’água
é um passo decisivo no uso da música associada à palavra. Vamos
explicar o porquê: a peça se estrutura em forma de poema, com mais de
quatro mil versos, mas dentro de uma linguagem coloquial. Isso foi parte
da estratégia de Paulo Pontes, que buscava a construção de um teatro
popular e acreditava que o verso era um grande aliado. Portanto, mesmo
com esse formato, que poderia soar “erudito”, a inovação acontece porque
os versos foram inspirados na forma de falar do cotidiano, o que os
torna popular. E, se em Morte e Vida Severina, Chico criou música a partir de uma poesia já existente, conceber seu próprio poema não seria problema.
Agora o curioso: segundo ele, a peça virou musical por acaso. De início, tinha apenas a canção-tema, porque Jasão
é um compositor. Mas aos poucos, ele e Pontes foram musicando a peça,
inserindo canções e pensando na música como um elemento importante
dentro da história.
Sobre as músicas,
apesar de ligarmos o conjunto habitacional a uma “favela, segundo Chico,
não era exatamente essa a ideia. A parte musical estava longe de ser
caracterizada como um sambão popular carioca, pois as canções estão
inseridas dentro da história, mas fora de uma visão realista, ou seja,
se fôssemos trazer pro dia-a-dia , Joana provavelmente não as
cantaria. Elas acabam entrando um pouco para o campo da fantasia, mas
nem por isso deixam de ser importantes.
São quatro canções oficiais: Flor da idade, Basta um dia, Bem querer e a canção título. Com exceção da primeira, que é musica de grupo, todas são cantadas por Joana.
Outros trechos da peça são musicados, muitos temas se repetem na voz do
coro e, no texto, alguns versos são sugeridos como música. Os ritmos
populares entram, principalmente, como música incidental e ajudam a
embalar muitos dos versos. Pode-se pensar: mas um musical com apenas
quatro canções? Alguns críticos chegaram a questionar Gota D’água dentro do gênero. Mas ai que está o “pulo do gato”.
João Fonseca e Heron Coelho, diretores que montaram suas versões de Gota D’água, falaram diretamente ao Mr.Zieg sobre isso:
“Acho que apesar da peça ter poucas
musicas, ela é extremamente “musical” exatamente pelo fato de ser em
versos. Na nossa montagem optamos por ampliar essa característica
inserindo outras musicas do Chico Buarque que não haviam sido compostas
para a peça e algumas musicas que foram compostas especialmente pelo
diretor Roberto Burgel a partir dos versos existentes em trechos que eram apontados no texto como musica – diz João Fonseca.
Heron pontua: “A música está nos versos, no texto e no contexto. Talvez a crítica não entenda isso. Gota D’água
tem música o tempo todo, eu compus uma trilha incidental para violão e
percussão (inclusive concorreu ao Shell 2006, no nome do violonista da
época, mas não ganhou), e essa trilha perpassa o texto em momentos
importantes. Ela deixa de ser incidental, pois norteia, por vezes, o
dialógico da dramaturgia sob forma de versos absolutamente musicais. A
crítica não vê isso…”
Indo mais além, segundo Isabel Jasinski,
professora da Universidade Federal do Paraná e responsável pelo artigo
“As Nuanças teatrais da música em Gota D’água”, o uso da música nesta
peça é parte intrínseca da obra e aproxima-se do uso que a ópera faz
deste recurso , hipnotizando o espectador pela unidade som/palavra.
Existe uma dinâmica própria na peça: a entonação dos versos cria um
ritmo próprio, que é acentuado pela musica de fundo ( ou incidental) e
que também define o tom da cena. E as canções, quando interrompem esse
“ritmo” ou substituem uma fala, elevam o estado emocional dos
personagens ao máximo, misturando sentimentos internos, pensamentos e
tudo aquilo que não é visível por outros personagens. O público acaba
envolto por toda essa atmosfera e, talvez por isso, Chico tenha falado
que as canções extrapolam o real, porque elas nos atingem no nível dos
sentidos. Sem querer, já que isso não foi pensando na sua concepção,
temos um efeito parecido com Sweeney Todd, de Stephen Sondheim, em que a música provoca no público diversas sensações e os deixa mais próximo do “ambiente” onde se passa história.
Portanto, podemos arriscar que Gota D’água é
um padrão diferente de musical. É fundamental o papel da música na
historia, ainda que com uma função diferente da qual estamos
acostumados. O conjunto de elementos da peça, que envolve, além da
música, a direção ( musical e de cena ) e a interpretação da
protagonista, ajudaram a estabelecer a força da nossa tragédia
brasileira, tornando-a um grande marco.
A MONTAGEM ORIGINAL
“Da máscara trágica à voz poderosa, Bibi
vive sempre o clímax, sem desfalecimento. Uma identificação total à
personagem, que explode com vigor de fera enjaulada.” Sábato Magaldi
A peça estreou do Rio de Janeiro em dezembro de 1975, no Teatro Tereza Rachel (hoje, Theatro Net Rio). A direção era de Gianni Ratto, italiano radicado no Brasil e com grande importância na evolução da nossa cena teatral. A grande protagonista era Bibi Ferreira, na época casada com Pontes e que retomava a parceria com o marido e Chico após O Homem de La Mancha.
Sua interpretação de Joana virou referência e lhe deu dois prêmios: o
Moliére e o APCA – Associação Paulista dos Críticos de Artes.
“Não podia decepcionar ninguém. Eu me
tranquei durante três dias num hotel porque não conseguia falar os
solilóquios e os diálogos. Precisava adquirir a respiração contada, os
tempos. Nos diálogos, falava um português mais leviano, jogado; nos
solilóquios, buscava o clássico. Se interrompesse a respiração, perdia a
dramaticidade”, conta Bibi.
Bibi marcou não só a sua carreira, mas a
historia do teatro, em especial do teatro musical no Brasil. Sua
interpretação, inclusive nas canções, reinventou o papel do ator de
musical. Talvez o termo “performer”, usado mais no teatro americano,
caberia melhor, pois o trabalho de composição do personagem, construído a
partir do texto falado, continuava presente nas canções. Eles se
conectavam, se completavam.
Gota D’água foi considerada uma mega-produção para época. No elenco, além de Bibi, tínhamos outras figuras de alto escalão: Roberto Bomfim (Jasão), Oswaldo Loreiro (Creonte), Bete Mendes (Alma), Luiz Linhares (Egeu),
entre outros. Possuía um cenário grandioso, com estrutura de vários
andares, com escadas e plataformas e até um grupo de dança, com cerca de
dez bailarinos, que executava as coreografias de Luciano Luciani.
A peça ficou em cartaz até fevereiro de
1977, chegando a ir para o Teatro Carlos Gomes, onde fez temporada
popular. Em abril do mesmo ano, Gota D´água estreia no Teatro
Aquarius,em São Paulo, e faz 650 apresentações, um recorde pra época.
Um ano antes, em meio ao sucesso, uma “tragédia”: Paulo Pontes falece
aos 36 anos de idade.
Em resumo, a peça trouxe a “palavra” de volta aos palcos, como completa Bibi: “A Gota Da’Água
me dá muito prazer pela sua beleza, pela oratória da palavra, pela
força de dizer “agora eu estou falando”. E você sentir de repente, que
você se incorpora de tal forma no personagem, que você pensa que não
existe mais autor…”
Ficha Técnica da Montagem Original Texto: Chico Buarque | Paulo Pontes / Música: Chico Buarque Direção: Gianni Ratto / Direção musical: Dori Caymmi Coreografia: Luciano Luciani / Cenografia e figurino: Walter Bacci
Elenco:
Bibi Ferreira: Joana, Oswaldo Loureiro: Creonte, Luiz Linhares: Egeu Roberto Bomfim: Jasão Bete Mendes: Alma, Sonia Oiticica: Corina, Carlos Leite: Cacetão, Isolda Cresta: Nenê, Norma Sueli: Estela, Selma Lopes: Zaíra, Maria Alves: Marta, Roberto Rônei: Boca Pequena, Isaac Bardavi: Amorim, Geraldo Rosas: Xulé, Angelito Melo: Galego
OUTRAS MONTAGENS
Depois de um período em silêncio,
(afinal, a montagem com Bibi virou um clássico) surgiram inúmeras
montagens, amadoras e profissionais. Em 2002, recebeu leitura do diretor
Gabriel Villela, ficando em cartaz no antigo Tom
Brasil e no TBC. Duas versões mais recentes merecem nossa atenção, elas
reinterpretam a tragédia de Joana, inserido novas música, arranjos, mas
sem “trair” a concepção original. São elas:
Gota D’Água – Breviário (2006)
Heron Coelho fala da sua adaptação:
“A adaptação reduziu um texto de 5 horas para 2 horas, e até menos. Assim como em Calabar-Breviário,
tive que me centrar no “breviário” da peça, a espinha dorsal temática
do texto, e de modo livre, utilizando canções do compositor que
dialogassem com a peça – no caso de Gota, a canção Levantados do Chão,
de Chico e Milton, abrange o problema da “falta de terra” e da
“exploração do homem sobre o homem”, temas pouco ressaltados em outras
montagens. No caso de Gota, eu fiz a adaptação em duas semanas,
levantamos coletivamente a peça, e por si o texto foi se adaptando
também, com os atores e especialmente com a co-direção de Fadel, minha
parceira querida.”
Creio que desconstruí a linguagem em
versos, deixando o texto livre para a interpretação dos autores, sem
perder a abordagem brechtiana concernente ao conceito Breviário. Por si,
o texto se reelabora, faz do ator seu “cavalo” e o ator também faz do
texto o seu “cavalo”, num jogo em que, por vezes, a “rima”, por exemplo,
fica muito mais intrínseca à prosódia do que especialmente à estrutura
de poema que o texto tem.”
Georgette Fadel, a
Joana da montagem, recebeu premio Shell de melhor atriz em 2006 . Heron
revelou ao Mr. Zieg que a peça está voltando em maio de 2013 para os
palcos de São Paulo.
Gota D’Água (2007)
Com direção de João Fonseca, trazendo Izabella Bicalho no papel Joana, a versão inseriu novas músicas de Chico, como O que Será (À Flor da Pele) e Partido Alto,
além de músicas compostas por Roberto Burgel a partir dos versos
originais. Foi criado uma estrutura mais próxima à do musical que
estamos acostumados a ver hoje em dia, aproveitando canções com as
mesmas sonoridade e teatralidade.
O musical arrebatou os palcos, sendo bastante elogiado pela atuação da protagonista e de Thelmo Fernandes, o Creonte da montagem. Foi vencedor de diversos prêmios como por exemplo, Prêmio Shell, Prêmio APTR, Contigo e o Qualidade Brasil.
Em entrevista à Folha de São Paulo, em
2009, Izabella destacou: “Gota d´água resgata o valor da palavra,
exaltando a poesia lírica, ao mesmo tempo em que expressa uma dura
crítica social.”
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