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SOBRE CHUVAS E PARADIGMAS

texto escrito no ano de 2010 por 
Fausto Gadelha Cafezeiro
(21 anos de idade - estudante de geografia - UFF)


"O artigo de Cristovam Buarque chama atenção para o fato de que a catástrofe provocada pelas chuvas do início de abril no Rio de Janeiro é o resultado de uma administração inadequada do solo urbano provocado pela falta de visão de futuro dos órgãos administrativos e por décadas de um 'modelo de desenvolvimento perdulário e conservador'. Assim, o texto segue uma linha que considera ser um fator humano a causa da grande catástrofe acontecida, e não um fenômeno natural: 'a culpa é da nossa cultura da preferência pelo imediato e do pavor à prevenção [...] Fizemos a opção pelo imediatismo, pela concentração, pela industrialização, pela urbanização apressada com infra-estrutura incompleta'.
Mas o artigo torna-se insuficiente para se entender a tempestade pela falta de uma visão integrada. Ali, as soluções apontadas são a urbanização das favelas e um modelo econômico que garanta aos favelados o direito à cidade. Não se menciona, em momento algum, a necessidade de se perceber o caráter holístico das chuvas, no sentido de serem um fenômeno humano e natural num mesmo tempo e mesmo espaço.  
Analisemos o desastre acontecido. Uma frente oceânica - vinda do Atlântico Sul, cujas águas estavam mais quentes do que habitual devido ao fenômeno El Niño - encontrou um bolsão de ar quente e úmido no continente. Ou seja, no ocenao houve um processo muito grande de evaporação, e, pela circulação dos ventos, a grande umidade oceânica encontrou o calor também úmido do continente, e o resultado foi uma tempestade de enorme proporção. É um fenômeno relativamente raro, porém, não é a primeira vez que uma tempestade provoca catástrofes humanas, deslizamentos de enconstas, alagamentos, caos urbano.
Há que se levar em consideração que todas as metrópoles sofrem com as chuvas torrenciais cíclicas. Nosso modelo de civilização é, como o de qualquer país colonizado, uma tentativa de cópia das cidades europeias. Copiam-se a disposição da ruas, os estilos arquitetônicos, as técnicas de construção do espaço urbano. Obviamente, as elites brasileiras não perceberam que também são sujeitos da construção do espaço urbano as classes hegemônicas, construindo suas favelas, seus contra-espaços, que são historicamente os mais antigidos pelas enchentes em termos de vidas humanas e de perdas materiais. A partir daí, o que se vê é uma luta pela urbanização dos contra-espaços, pela cidadania do contra-espaço, pelo direito à cidade dos sujeitos não hegemônicos. Como toda hegemonia precisa disciplinar a contra-hegemonia, foram realizados, no Rio de Janeiro, diversos projetos de urbanização das favelas.
Há dois fatos muito curiosos a respeito das chuvas. Primeiro, muitos dos morros mais atingidos por deslizamentos (Morro dos Prazeres, Morro dos Macacos, Morro do Bumba entre outros) já haviam passado pelas tais obras de urbanização, que incluem saneamento básico e sistema de galeria de águas pluviais, que, teoricamente, ajudariam no escoamento da água da chuva e resolveria os cíclicos e crônicos problemas das enchentes. Segundo, em encostas habitadas por classes sociais mais abastadas hove também deslizamentos de terra - lugares estes que obviamente dispõem de toda infra-estrutura urbana e que possuem grande parte da vegetação preservada. Em um caso como no outro, a tal da urbanização não livrou da catástrofe natural.
O problema é, então, de outra ordem. Vivemos uma relação sociedade-natureza baseada numa dualidade. Sociedade é uma coisa, natureza é outra. Sociedade é sujeito, natureza é objeto. Sociedade sou eu, somos nós; natureza é o outro, é o externo. Sociedade é domeinante, natureza é dominado. Assim, sociedade explora e usa da natureza de acordo com a sua lógica capitalista, européia, ocidental. Consequentemente há uma degradação ambiental que favorece às catástrofes naturais: a impermeabilidade do solo urbano dificulta em muito o escoamento de água,favorecendo as enchentes. Ou seja, a urbanização favorece as catástrofes, em vez de resolvê-las.
Na verdade, as enchentes conseguiram demonstrar a crise dos paradigmas filosóficos da sociedade moderna ocidental. Somos colonizados por europeus, nosso espaço urbano está, mesmo quando se trata de contra-espaço, marcado por suas técnicas. Nosso paradgma científico-filosófico é o da dualidade Homem versus Natureza. E as cidades, como produção de espaço, materializam a relação sociedade-natureza. Ao fim e ao cabo, nossas cidades são favorecedoras de catástrofes advindas de tla dualidade.
O velho problema das enchentes demonstra a crise do paradigma europeu ocidental e, no caso brasileiro, a necessidade de se construir espaços em se considerando a realidade da natureza tropical. A geografia do Rio de Janeiro põe grande parte do território urbano em situação de risco. E entenda-se geografia não só como as condições naturais do local, mas como um espaço que, como tal, é o resultado de sistemas de objetos e sistemas de ações, é a materialização de relações sócio-ambientais.
Precisamos reintegra homem e natureza, e precisamos de uma visão brasileira sobre o Brasil. Precisamos construir nossos espaços à luz da nossa realidade natural e humana. Precisamos, enfim, de uma nova geografia, exatamente para estudarmos as interfaces. Não nos esqueçamos que o geógrafo é, antes de mais nada, um conciliador de saberes espaço-temporais e, portanto, de saberes naturais que são humanos."  

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