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LIBERDADE, LIBERDADE !

documento de censura apresentado antes da exibição de programas de tv nos
ANOS DE CHUMBO

Estreei profissionalmente como atriz em 1983, no espetáculo "Chapetuba F. C." de Vianinha. Nesta época o presidente do Brasil era João Baptista Figueiredo, cujo governo é historicamente considerado como transição entre o regime de ditadura militar e o retorno à democracia.
Mas, como a teoria na prática é outra, neste período os espetáculos de teatro ainda eram obrigatoriamente submetidos a uma sessão prévia para os censores da Polícia Federal, que exigiam uma apresentação com todos os aparatos de cena: cenário, figurino, luz, sonoplastia... e o texto dito na íntegra, para que tudo pudesse ser "avaliado" por eles, que autorizariam ou não a temporada.
Isto significa que tínhamos de investir na produção sem a menor segurança de que poderíamos trabalhar e reaver o investimento (e investíamos porque acreditávamos no teatro e no que queríamos dizer com ele). 
Lembro que tivemos de explicar por que "gente tão jovem queria montar um texto de Vianinha escrito em 1959" (Vianinha era um dos dramaturgos malditos pela ditadura). Ressaltamos o futebol, o esporte mais popular do Brasil, como centro da trama, desviando o foco dos elementos sociais inseridos no texto. Conseguimos a liberação, mas foi suada.
Em 1985, produzi um espetáculo de esquetes que incluía, além de um texto meu, dois de Alcione Araújo e dois de Caio Fernando Abreu, um deles chamado "Diálogo". Antes da apresentação no palco era obrigatório enviarmos o texto para a censura, e qual não foi minha surpresa quando fui chamada às vésperas da estreia para esclarecimentos na Polícia Federal; eles queriam saber o que queríamos dizer com "Dia Logo", "Logo, o quê? O que estaria escondido por trás daquele "Logo"? Um chamado? Uma convocação para aquele dia? Bem... mostrei que a palavra era uma só, Diálogo, com acento agudo no A, apenas uma denominação para uma conversa entre duas pessoas. O esquete foi liberado, embora persistisse um ar de desconfiança no semblante da censora.
Em 1987, já no governo de José Sarney, tivemos de encenar Qorpo Santo - O Delírio da Criação no palco da Polícia Federal, porque estrearíamos fora do Rio de Janeiro, em Pelotas (RS), no Festival de Teatro que tinha lá. Foi outra cansativa negociação, pois, além do incômodo ambiente, os funcionários da censura insistiam em atribuir conteúdos subversivos a um texto escrito em 1866.
Enfim, conto tudo isso para que não pensem, os que acordaram para o mundo depois deste período abominável da nossa história, que tudo acabou repentinamente, sem dor e sem mais delongas. Não foi bem assim que "a banda tocou". E agora pagamos um preço bem caro por tudo o que nos foi subtraído de informação, de identidade cultural, de brasilidade.   
Há quem defenda o cerceamento à liberdade como recurso de controle social na profilaxia da rebeldia contra os interesses da moral e dos bons costumes em poder do Estado. Há quem defenda o poder autoritário do Estado até que o povo aprenda o que deve fazer com a liberdade. De um lado ou do outro, muita gente prefere abrir mão da liberdade no seu sentido mais amplo, porque para o seu pleno exercício é preciso assumir responsabilidades. E ser responsável é muito chato. Acreditam estas pessoas que não há bem maior do que pão e circo, para se fartarem e se divertirem. Ledo engano.         
Não há bem maior do que a liberdade!
Liberdade esta que, dentre outras coisas, garante a todos nós, cidadãos, o direito básico de fazermos nossas escolhas, de formarmos opinião sobre o que nos cerca, de gostarmos ou não disso ou daquilo e, sobretudo, de podermos expressar o que pensamos e o que sentimos em relação a quaisquer assuntos, fundamentados em nossos próprios princípios e valores.
Não existem verdades absolutas. Todas as verdades são relativas e partem de um ponto de vista. É imprescindível que os vários pontos de vista, e quanto mais antagônicos melhor,  sejam expressos e atentamente, imparcialmente, observados por nós, para que cada indivíduo possa escolher claramente qual deles lhe é mais aceitável.
Caso fossem verdades as verdades que assim se impuseram em determinados momentos históricos, ainda lá, naqueles tempos, estaríamos, acreditando piamente que a Terra é o centro de tudo, que o Sol nasce e morre todos os dias, que as águas dos oceanos caem atrás do horizonte, e por aí vai...
Quem constrói sua Vida sob a égide de uma verdade definitiva, seja ela de que natureza for, e não se permite abrir para receber novas ideias e propostas, é escravo da intolerância, da ignorância, da covardia.
A liberdade ousa, busca, reabastece-se do inesperado, acredita na inteligência, supera antigos conceitos e descobre outros com imenso prazer, e compartilha com os outros generosamente, amorosamente, indiscriminadamente.
Quem não quiser ouvir que não ouça, quem não quiser ver que não veja, quem não quiser tocar que não toque, quem não quiser experimentar que não experimente, quem não quiser sentir que não sinta. É um direito que cabe à sua liberdade de escolha.
No entanto, é preciso estar atento àqueles que defendem a vigilância sobre a liberdade, ou estimulam o descrédito nos veículos que a sociedade dispõe para expressar-se, seja sob que pretexto for. 
O cerceador das liberdades vem sempre na pele do salvador, seu discurso é paternalista, protecionista, vez por outra, vítima das circunstâncias provocadas por inimigos ocasionais, que amanhã ou depois podem ser seus aliados.
LIBERDADE, LIBERDADE! 
Até bem pouco tempo eu não poderia escrever sobre isto.
CECILIA RANGEL
(29 de setembro de 2010)

Comentários

  1. Partenalista? rs

    Ótimo, ótimo texto, tô divulgando, adianto que vou imprimir pra usar em sala de aula. Com o devido crédito, lógico.

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