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APENAS UM CONTO DE AMOR

TORTA DE FRAMBOESA 
Dona Jota era uma velhinha que morava sozinha em um sobrado de Santa Teresa, bairro histórico do Rio de Janeiro. Solteira, lépida e fagueira, dona Jota distribuía simpatia pelas cercanias de sua casa, onde além dela habitavam trinta gatos, um casal de cachorros vira-latas e um papagaio que atendia pelo nome de Rocha. 
Exatamente às seis e trinta da manhã, obedecendo a um ritual pontual e infalível, despedia-se da bicharada ao portão e punha-se a caminhar até a padaria, com Rocha sobre seu ombro esquerdo.
Rocha tinha uma peculiaridade enquanto ave falante: sabia declamar inteirinho "Amor e Medo" de Casimiro de Abreu, poema que outrora fora sussurrado ao ouvido de sua protetora pelo galante alfaiate Zequinha Alfinete, primeiro e único amor da vida dela. 
"Quando eu te fujo e me desvio cauto da luz de fogo que te cerca, oh! bela, contigo dizes, suspirando amores: _ Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!", e por aí vai... 
Rocha repetia os versos no espaço exato do trajeto com espantoso tempo teatral.
Dona Jota  ouvia todos os dias aquelas mesmas palavras com um nostálgico sorriso congelado em seu rosto desde o dia 08 de novembro de 1915, data em que, vestida em voile e perfume de jasmim, esperou pela visita de Zequinha, que prometera pedi-la em casamento aos seus pais no final daquela tarde.
Dona Jota ficou horas sentada na varanda do sobrado sentindo esvaecer aos poucos o cheiro da torta de geleia de framboesa, a favorita de Zequinha, que ela mesma havia feito, já imbuída de seu papel de noiva. Quando finalmente convenceu-se de que Zequinha não chegaria mais, entrou, foi até a cozinha, pegou a torta que estava sobre a mesa da copa, trouxe até a sala de jantar, cortou-a em vários pedaços e serviu aos pais, irmãos e outros parentes que lá estavam, com um sorriso de anúncio de pasta dental que, não se sabe o por quê, jamais desmanchou.
Sem derramar sequer uma lágrima até o fim de seus dias, por esse ou qualquer outro motivo, dona Jota, cumpriu o mesmo ritual de espera cotidianamente, enquanto existiu, resistindo à morte de toda a sua família, a chegada de cada um de seus bichinhos de estimação e, sobretudo, aos galanteios de todos os homens que a cortejaram, e que não foram poucos. 
Um dia, 8 de novembro de 1995, a exatos oitenta anos depois, dona Jota, de sua varanda, viu passar Zequinha de braços dados com uma bela senhora. Ao suspiro emocionado da velhinha, Rocha pôs-se a recitar - "... Como te enganas! Meu amor é chama que se alimenta no voraz segredo, e se te fujo é que te adoro louco..."
Tomado de repentina e melancólica lembrança, vencendo as limitações físicas de sua idade, o alfaiate ergue seus olhos na direção do sobrado e depara-se com a figura de dona Jota também já muito velhinha. Uma lágrima lhe escapa ao controle; ela, porém, se levanta, desmancha o sorriso e entra, fechando a porta e as cortinas.
Nunca mais ouviu-se a voz do Rocha.
Nunca mais ninguém soube de Dona Jota. 
Cecilia Rangel
  (08 de novembro de 2009) 

Comentários

  1. Nossa!!! tudo maravilhoso, para pensar e pensar até esquentar a cabeça... simplesmente lindo!!!

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  2. queria conhecer a dona jota dentro de mim

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  3. Querida Cecília,
    Esse conto tem a delicadeza da atmosfera naïve tipicamente brasileira que vc escreve com sensibilidade a representação nossa, brasileira até a última gota.
    São imagens, de um tempo inocente através dos antigos sobrados, onde as mulhres cultuavam a espera perfumadas de jasmim... É lindo esse conto da Cecília. RANGEL

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